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Cultura Digital: O que foi, o que será

Convidaram-me para encontro promovido pelo Pontão de Cultura Sacix com o pedido uma análise sobre a experiência brasileira com a Cultura Digital, particularmente sob o programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura, no período entre 2004 e 2010, momento em que o Brasil foi referência e vanguarda mundial no tema. Nesse meu tempo da vida, de volta às minhas raízes caipiras, olhando para um bosque a partir de meu quintal, no lugar de uma palestra, prefiro oferecer a análise em forma de poema.

Célio Turino

Foi real.
Foi vanguarda.
O Brasil ensinou ao mundo
que cultura não se enquadra,
não se engarrafa,
não se vende na prateleira dos monopólios.

Cultura Digital
autonomia tecnológica
trabalho colaborativo
generosidade intelectual.

Software Livre,
código aberto
como um rio sem dique
que arrebenta as margens
com conhecimentos que se completam,
afluentes do rio maior;
cada qual com seu saber e modo de ser,
gente que nunca se viu pessoalmente,
mas que sabiam estarem na afluência
para um rio grande como o Amazonas,
digital, imenso, real.

Inteligência vital
o fluxo do saber
que não é artificial,
é pulsante, coletivo.

Ação Cultura Digital da Cultura Viva e os Pontos de Cultura,
cada comunidade, cada Ponto,
com seu estúdio multimídia
em tecnologias livres.

Autonomia para se ver e ser visto
do jeito que se quer,
do jeito que se é.

Autonomia para gravar músicas,
fazer filmes, compor sinfonias,
contar e recontar histórias,
não mais pelos outros,
mas por si,
na voz de cada Ponto de Cultura,
cada comunidade, cada povo.

Povo livre,
dono do seu destino,
processando dados
controlando programas
interpretando processos lógicos
navegando em barco digital.

Sim, aconteceu!
Feito pelas mãos do povo.
Eu vi!
Muitos de vocês viram;
ou melhor, fizeram.
Sim, aconteceu!

O barco Xemelê
em referência ao código XML,
abrasileiramento em ritmo e nome lúdico.

Conversê,
rede social para os Pontos de Cultura,
essa rede foi feita,
juntava as funcionalidades do youtube e facebook
quando esses engatinhavam.

Foi em 2006,
o futuro era nosso.
Não foi,
mas poderia ter sido nosso.

Tantos jovens hackers,
engenheiros da computação
desenvolvedores
ativistas da cultura digital
trabalhando em união.

Pode haver maior poema que esse?!?!

Tantos navegando rios
cruzando estradas
espalhando sementes digitais.
Tantos conhecimentos ofertados
entre igarapés,
nas rotas dos Mocambos,
junto aos Ikepeng, Ashaninka,
o Vídeo nas Aldeias,
nas favelas, periferias,
nos becos e praças,
nas cidades pequenas e grandes…

Gilberto Gil ministro da Cultura
e um bando de tropicalistas e comunistas,
hackers, artistas, ambientalistas…
À frente da Cultura Digital,
um velho hippie, Cláudio Prado.

Sucata tecnológica transformada
em computadores potentes,
o futuro começava
nas mãos da gente,
do povo, dos de abaixo.

Circuitos reciclados,
antenas de Wi-Fi feitas
com lata de leite em pó,
conexão por internet via satélite
(programa G-sac, do Ministério das Comunicações),
chegando nos quilombos,
no Xingu e assentamentos rurais.

Tempo de metarreciclagem digital,
colaboração, partilha
e generosidade intelectual
Sim, aconteceu!

Oitenta e duas
Oficinas de Conhecimentos Livres
realizadas em 6 anos, de 2004 a 2010,
por todo canto, com milhares de ativistas,
mestras e mestres da cultura popular,
jovens dos Pontos de Cultura do Brasil profundo.

Onde?
Nas favelas, aldeias, vilas rurais, metrópoles…
Para quem, com quem?
Jovens das periferias, indígenas, quilombolas, camponeses…
Milhares de sonhares em criação comum,
Creative Commons e suas licenças livres.

Sim, aconteceu!

Cada Ponto de Cultura com suas
tecnologias, memórias e miragens;
conhecimento compartilhado
transformado em arte e potência.
Haverá sonho maior que esse?!?!

Aconteceu.
Foi real,
poesia máxima da Cultura Viva,
o mundo olhou para o Brasil com admiração;
não o mundo das ganâncias,
dos egoísmos e individualismo,
o mundo da cultura livre
pelo bem comum.

O mundo admirou,
estudou, colaborou,
aprendeu e perguntou:
Como foi possível?

Como poderiam os mestiços, os cafuzos,
os periféricos, os invisíveis, a gente dos rincões do Brasil,
de Pontos de Cultura que nunca antes haviam sido percebidos,
criarem o futuro antes do tempo?

Nos antecipamos até ao “deserto de notícias”,
compreendemos a comunicação
como direito humano básico,
não como mercadoria;
surgiram os Pontos de Mídia Livre.

Poesia em papel de embrulhar pão,
carbono zero nas notícias,
financiamento público para revistas,
sites, rádios, TV, podcasts (e nem havia podcast).

Se deu vez e voz ao midialivrismo
e à comunicação comunitáriacomo nunca antes e nunca mais se viu,
nem no Brasil, nem em lugar algum,
mas aqui aconteceu, mesmo que em tempo curto.

Sim, aconteceu!

Imaginem se tudo isso tivesse tido continuidade?
Ano a ano, melhorando cada vez mais,
com mais apoio.
Imaginem…

Mas o tempo virou poeira,
veio 2011 e, no silêncio traiçoeiro dos gabinetes,
retração, retrocesso (que começou no primeiro dia).
desmonte, assédio e perseguição.

O que era rede virou fio partido,
o que era livre foi trancado
em códigos proprietários
sob o mando das Big Techs.

Como foi possível desmontar invenção tão bonita?
Desprezo àquilo que o povo inventa.

Os que cortavam os cabos do futuro
não percebiam que,
ao sufocar a Cultura Viva e a ação da Cultura Digital,
estariam estrangulando a própria garganta.

Calaram a voz do povo,
a única voz que poderia ter defendido
o governo que cairia poucos anos depois.

Golpe seco, sobrou o grito
– ah, o grito -,
esse ecoou do outro lado
onde o medo plantou ódio
a ignorância virou intolerância,
e a treva alargou os dentes.

Sem cultura digital autônoma,
sem alegria e invenção,
sem ousadia, sem encontro,
cresceu o monstro.

Monstros erguem medos,
agora com nome de Fake News,eufemismo para mentiras, ódios e cizânias,
censura e manipulações algorítmicas.

Atropelados em turbilhão,
talvez sequer tenham entendido
que ao perseguir a Cultura Digital
estavam a colocar o Golpe adentro.

De certa forma o Golpe sempre esteve dentro,
disfarçado de burocracia sem alma,
rendida, hedonista (como Max Weber descreveu).
Retrocesso travestido de técnica que é atraso
parado no tempo que corre ao contrário.

É assim na cabeça de todo vassalo,
colonizado, voluntariamente servil,
sempre enredado em seus grilhões;
o Golpe sempre está dentro.

Tesoura fria a cortar cabos e sonhos
sempre há em governos,
do lado que for,
impedir avanços é da lógica do Estado,
se moldar e dizer que não pode mudar.

O Estado tem lado,
não aceita emancipar,
porque, se emancipa,
perde o poder de controlar.

Avanços, só por frestas e arestas
que logo são fechadas
quando os que mandam
percebem que avançando assim
perderão o poder de mandar.

Enfim…
Não vale a pena gastar verso
com quem prefere se amoldar
a lutar pela emancipação.

Enfim…
O que um dia se sonhou Cultura Livre
foi sendo substituído pela trama dos algoritmos.
O que poderia ter sido nosso
foi dominado pelos impérios invisíveis.

Enfim…
Hoje, até a comunicação das Forças Armadas
passa por satélites de multibilionário
com saudações nazistas.
Isso sim é perder soberania, se render.
Enfim…

Quanto retrocesso!
Poderia ter sido diferente,
mas a hora correu ao contrário
e as Big Techs tomaram o domínio do tempo.

O Brasil esqueceu que foi vanguarda
e, na amnésia do tempo,
abriu caminho para a treva,
retrocedeu.

Pode haver maior tragédia que essa?!?!

Mas nada está morto
enquanto houver quem lembre,
nada se perde
quando o povo decide recomeçar.

A Cultura Digital
segue na rota dos Baobás,
a Cultura Viva
segue pulsando nos Pontos de Cultura que resistem.

O Brasil ensinou o mundo uma vez,
ensinará de novo,
o que foi, será,
o que cortaram, renascerá.

Onde há raiz
há retorno da vida
que pode surgir
do redemoinho do Saci;
ou melhor, Sacix.

Que redemoinho será esse?
Um furacão de graça,
que rola, roda, sem parar, sem fim,
com um pé só,
riso e vento unidos,
turbilhão de vida e arte,
tecnologia em cultura livre,dança com alegria e sabedoria,
passado, presente e futuro,
tradição e inovação;
Revolução.

Agora é fazer de novo,
Sacix é um belo nome para uma Rede a desafiar o X.
Novos estúdios,
datacenters distribuídos,
com tecnologia nossa,
colaborativa, generosa.
Metarreciclagem outra vez!

Inteligência em Teia,
vital ao invés de artificial,
inventando aquilo que nem se sabe…

Enfim, libertação!

OUTRAS POESIAS

A verdade de nosso tempo

Não há mais
quem diga o nome da verdade,
ela foi vendida
aos pedaços no leilão
dos algoritmos das redes sociais.

A verdade se molda
ao desejo de poucos
e vira mentira sedutora
que rebrilha,
é a verdade de nosso tempo.

Mas a roda gira
e um dia,
que venha breve
esse dia,
a verdade irá voltar
a ser dita
pela vontade dos muitos.

O relógio

Extemporâneo,
o relógio do mundo
não marca horas,
marca domínios.

Na antiguidade,
o domínio de Reis, Sacerdotes e Guerreiros sobre plebeus e escravizados.
No feudalismo,
a gente era parte da terra em que nascia,
servos do destino definido pelo Senhor.
Sob o capitalismo,
o domínio é do Capital sobre os corpos,
as horas, as mentes, desejos…,
sobre todas as coisas,
sobre a gente que vira coisa.
Sob o socialismo,
o sonho anunciado não se fez,
colapsou.

E tudo se agrava
sob o Capital exponencial
dos algoritmos e Inteligência Artificial.

O relógio do tempo atual
marca o esgotamento da mente,
a superficialidade,
a ausência de ideias complexas,
o apodrecimento dos desafios.

Relógio de domínios,
agora em brain rot,
impõe a podridão cerebral
sob o lixo informacional.
Pelas redes que enredam,
fragmenta, fragiliza,
e nunca une.

Mas há uma fresta,
um instante,
um lampejo,
um eco
que ressoa além das telas.

Há um segredo nos terreiros.
Há fogo brando, tambor de dentro,hackers, ativistas da cultura digital,
sementes teimosas a desafiarem o relógio do tempo.

Há um canto que resiste
em algum lugar,
em algum canto da gente.
Esse canto não se dobra
ao cálculo frio das máquinas sem alma.

Há uma fresta
no código opaco
das máquinas;
por essa fresta
o grito humano
se infiltra, insubmisso.

Essa insubmissão
virá em Software livre,
código aberto
para um mundo
sem Senhores
a mandarem
no estatuto do tempo.

O relógio do tempo
pode marcar domínios,
mas também se desintegra
quando o abraço continua quente
e o olhar segue ainda consistente
no passo do povo
que dança fora da regra,
que canta fora do tom

Houve um tempo

Houve um tempo,
esse tempo houve,
foi no início do século XIX
na Inglaterra,
artesãos e operários
quebraram máquinas a marteladas,
Ludistas, os “quebradores de máquinas”.

Não foi possível deter as máquinas,mas é possível com esse tempo aprender.

A memória de Ned Ludd,
o operário que se revolta
contra o patrão e suas engrenagens,
não vai se perder,
de seu martelo nasceu o sindicalismo
e todos os direitos que vieram depois.

Simbolicamente:
– Quebremos os espelhos de silício,
rasguemos os véus da névoa programada!

Na vida real
ainda temos a rua,
o gesto,
a voz que não se dobra
ao comando sem rosto
das assombrações digitais.

Que importa o relógio dos donos do mundo
se ainda sabemos contar histórias?

O tempo é mais que algoritmo

O tempo é mais que algoritmo,
o tempo é roda,
é pé que bate no compasso da terra,
é criança que corre no quintal
(ainda há quintal?),
é verso que nasce no peito
e explode em revolução.

Os senhores das Big Techs
podem tentar,
mas o mundo vai girar e girar,
rodar e rodar
até romper os grilhões
da sequência infinita
que manipula os cordões.

Memória não se apaga

Memória não se apaga,
os rios seguem seu curso
e o povo,
mesmo disperso,
enredado nessa rede
que parece não ter fim,
mesmo assim,
o povo aprende
a recompor-se,
como os pássaros que voltam
às rotas de sempre
quando chega a estação.

Relógio que marca domínios

O relógio do tempo
marca domínios,
mas um dia
marcará encontros.

Nesse dia,
de corpos vivos
e palavras inteiras,
o algoritmo cairá
como caíram
os outros impérios.